quarta-feira, 14 de maio de 2008

Educação sentimental do olhar

Paulo Portella Filho

Obras não são concebidas para agradar, mas para fomentar o diálogo entre artista e público, aprimorado com a ajuda do educador


Não consigo lembrar-me do nome do autor antigo que, na presença de um
estrangeiro que não tinha aberto a boca em sua companhia, lhe diz: "Fale,
para que eu o veja"; mas com sua licença, parece-me que nos podem
conhecer melhor através do olhar do que pelas nossas palavras.
Addison, Le spectateur ou le Socrate moderne, 1716


É preciso olhar a vida inteira com olhos de criança.
Henri Matisse


O convite para esta ocasião fez-me separar para o leitor as duas referências citadas acima e também desfiar intimamente um sem-número de vivências recolhidas desses mais de trinta anos em que me dedico como artista plástico ao ensino da arte. Especialmente, às atividades de ensino e educação em museus de arte, com todas as tipologias possíveis de público, tendo sempre a obra de arte como referência para os desafios do encontro: como educar o olhar do outro? Como educar o outro para olhar? Como educar-se para olhar junto com o outro?

Evidentemente não é o caso agora de recuperar descritivamente um inventário nas suas múltiplas ocorrências, como um conjunto de anedotas. Quero sim, pelo menos, tangenciar, em essência, alguns aspectos desses distintos contatos com o público que acredito possam ter ainda certa atualidade, e que nos podem auxiliar neste atual contexto.

De perturbadores na origem, esses contatos se constituíram para mim, entretanto, a partir da reflexão continuada, processual, numa das chaves mais interessantes quanto ao que fazer para acolher efetivamente a curiosidade alheia, e a vontade de instrução trazida com ela.

Então, como um jovem artista, recém-saído da universidade, comprometido com as idéias correntes de acessibilidade dos "comuns" à arte, na perspectiva do que chamamos hoje de educação não-formal, e interessado nas possibilidades que o contato com ela pudesse representar em suas vidas, tive minha atenção educada sobretudo pelas experiências vivenciadas com a recepção diária a um sem-número de jovens visitantes agrupados, em atividades complementares às da escola, que, então, não eram tão valorizadas, pelo menos não tão praticadas, como agora.

Invariavelmente, chocante era constatar que os jovens vinham instruídos da escola para registrar em seus cadernos todas as informações que pudessem recolher... das etiquetas postas junto às obras, sem que precisassem olhar para elas - as obras!

Quando chamados à obra, outra embaraçosa surpresa era escutar deles: - "Quanto custa esta pintura?" ou - "Qual a obra mais cara do museu?" como demonstrações de seu interesse pelas qualidades estéticas do objeto examinado. Armadilhas persistentes até hoje, meus colegas de profissão que o digam.

Minha compreensão dessas ocorrências, ou equivalentes a elas, porém, evoluiu. Felizmente.

A irritabilidade pessoal imatura surgida dessas ocasiões foi paulatinamente substituída pela compreensão de que questões ou comportamentos como os citados escondiam, em seu âmago, aspectos da maior importância para as atividades de interpretação pretendidas: eram os índices possíveis, socialmente aceitáveis, de interatividade e "interesse genuíno" pela arte, porém travestidos pela lógica da sociedade do consumo.

A busca do valor da arte enquanto produto de investigação espiritual e material era encaminhada e substituída pela busca de seu preço enquanto mercadoria - e daí o salto para sua relevância. Quanto mais caro, mais importante. Quanto mais alto o preço, mais sentido. Mas para quem?

Evidentemente eram perguntas não respondidas a contento. Como incomodavam...! E provavelmente ainda incomodam a muita gente! E como foram (e ainda são) desprezadas. Quantas chances perdidas (e a perder)!

Por outro lado, a cópia de dados tinha seu equivalente de qualidade atrelada também, e explicitamente, à quantidade. O esperado trabalho intelectual dessas ocasiões era transformado, e o praticado reforçava apenas a idéia do trabalho enquanto operação de força física: escrever, escrever e escrever...

Para muita gente adulta, ainda hoje aquelas questões são senhas para a introdução a esse universo de sofisticações espirituais e materiais das obras de arte. Desconstruir essa lógica (quantidade x qualidade) é, portanto, tarefa do interessado em educar-se para a arte. Desvendar o valor da arte é um trabalho difícil, que solicita dedicação, disposição também para o autoconhecimento, porém não impossível.




Áudio-guia para crianças na exposição do pintor
mineiro Alberto da Veiga Guignard no Masp



As obras, como sabem, não são concebidas pelo artista para que nos agradem especificamente, ou só para que gostemos delas. Elas transcendem essa camisa-de-força, ainda que possam, ou não, nos agradar. Elas são frutos, antes de tudo, de um diálogo profundo que ele, artista, trava consigo e com o contexto em que se situa, e buscam a comunicação de uma verdade pessoal e social. (Cada artista no tempo em sua dimensão de tempo e aí sua dimensão expressiva, dizia Ivan Serpa) Espelham de algum modo esse universo de deslocamentos íntimos e sociais, e testemunham temporal e poeticamente uma presença humana no mundo.

Os mistérios e as evidências dessa ocorrência necessitam de disposição e de disponibilidade do sujeito para seu usufruto. E hoje, como nunca antes, as oportunidades estão em princípio mais disponíveis.

Deve-se destacar que, nas últimas três décadas, a colaboração que os museus (e não só os de arte) por meio de seus setores de educação têm prestado para a formação contínua dos cidadãos tem sido cada vez mais relevante.

As instituições investem (mas não tudo, ainda que devessem) nessa área de educação não-formal, oferecendo múltiplas possibilidades que ajudam o visitante a conhecer e interpretar seus patrimônios materiais e imateriais e a conhecer-se melhor também. Entretanto, não há receitas prontas que preparem o bom olhar.

Os que não tiveram a chance de serem alcançados por um currículo escolar que privilegiasse o estudo da arte como se vê agora, encontram muitas oportunidades disponíveis. E cada vez mais profissionais bem preparados substituem, como deve ser de fato, a prática de iniciantes nesse oficio. Isso se justifica plenamente, pois o primeiro contato com a arte, conduzido inadequadamente, pode sepultar para sempre um relacionamento potencialmente promissor.

E, por falar nisso, quantas vezes você já foi ao Masp para ver ou rever as obras de sua coleção permanente? E à Pinacoteca, ao mac, ao Lasar Segall...? Quantas vezes você se interessou pelas oportunidades ali oferecidas, gratuitamente até, para sua iniciação ou aprofundamento na área?


Paulo Portella é coordenador do Serviço Educativo do Masp

Publicado em 14/05/08

Fonte: Revista Bravo!

SP Arte, zona de transcendência

Antonio Gonçalves Filho

Partilhando o que melhor se produz em arte, 67 galerias mostram mais de 2 mil obras na quarta edição da feira internacional

Nesta quarta edição da SP Arte, que reúne 67 galerias e 2.400 obras de arte, seria lícito perguntar se uma feira como esta, destinada à difusão da arte e promotora do colecionismo, não busca, antes, fornecer uma resposta sobre o lugar da criação artística num país de agudos contrastes sociais. Assim como nossos artistas modernistas resolveram sua crise de identidade elegendo um passado idealizado, ao incorporar conquistas estéticas da vanguarda européia do começo do século 20, o mercado brasileiro atual busca na obra de arte contemporânea um veículo de reconciliação social e geopolítica. Em resumo: a cada edição, atraindo não só galerias de várias regiões brasileiras, mas um número cada vez maior de marchands estrangeiros, dispostos a dialogar com a arte brasileira, a SP Arte aprimora seu papel como veículo de uma reconciliação por meio da arte. Durante a semana de realização da feira, num mesmo território, artistas de diferentes tendências, colecionadores dos mais variados perfis e galeristas de diversas vocações criam uma zona de transcendência dentro do pavilhão da Bienal, partilhando o que de melhor se produz em arte.

Após quatro anos, a idealizadora dessa feira, Fernanda Feitosa, diz, orgulhosa, que, ao facilitar esse acesso a um número cada vez maior de visitantes, a SP Arte ajuda a criar não só um território espacialmente qualificado como um território de identidade para a arte brasileira. Na primeira edição, em 2005, alguns galeristas respondiam ao convite de participação com uma pergunta: Por que participar da feira e de onde viriam, afinal, os novos clientes? Os números se encarregam de fornecer a primeira parte da resposta: foram 6 mil visitantes na primeira, 7 mil na segunda, 9 mil na terceira e, possivelmente, o dobro da feira inaugural nesta quarta edição. Quanto aos novos clientes, as próprias galerias dão uma resposta estimulante: ao expor, por vezes, obras de um mesmo artista representado em mais de um espaço, elas acabam criando para o visitante um museu temporário, capaz de fornecer dados aos colecionadores neófitos que, de outro modo, teriam de gastar horas incontáveis atrás de informações, que a feira acaba fornecendo num curto período de tempo e espaço (pouco mais de 6 mil metros quadrados este ano).

É claro que não seria seguindo um modelo surrado que a feira teria conseguido em quatro edições atrair novos clientes para as galerias e ainda promover artistas emergentes. A organizadora da SP Arte diz que jamais perseguiu o modelo da Arco ou de Basel, simplesmente por não acreditar numa idéia de franquia multinacional da arte em tempos de globalização e decomposição da educação artística. "O perfil que sempre perseguimos foi o do neófito não-familiarizado com o mercado, que tem real interesse em arte, mas fica inibido diante de uma galeria", define Fernanda Feitosa, argumentando que o ambiente descontraído da SP Arte democratiza o acesso do público à arte e desfaz a idéia do artista como demiurgo criador de formas incompreensíveis. Como prova dessa orientação quase pedagógica da feira, sua idealizadora cita as palestras de críticos, historiadores de arte e artistas, programadas em todas as edições, bem como as retrospectivas que, desta em diante, poderão ajudar na tarefa de orientar o olhar do novo colecionador. "Em conjunto como Sesc e a Associação Videobrasil, vamos promover, no Museu de Arte Moderna, uma mostra com os vídeos premiados nos últimos 20 anos do festival", revela, com justificado entusiasmo. Afinal, foi o Videobrasil que trouxe ao País obras de criadores como os videomakers Bill Viola, Gary Hill e o desenhista sul-africano William Kentridge, entre outros.

Ela mesma uma colecionadora que começou há apenas dez anos a comprar obras de arte, reunindo um respeitável acervo de pinturas de Volpi e esculturas de Amilcar de Castro e Ernesto de Fiori, Fernanda Feitosa atribui ao contato com galeristas e amigos a desmistificação da idéia de mercado de arte como uma cultura opressiva que afasta possíveis interessados. É uma falácia, segundo a advogada, que trocou de profissão ao freqüentar a feira de arte contemporânea de Buenos Aires quando morava na Argentina, há oito anos. Animada pelo marchand e amigo Paulo Kuczynski, ela começou a pensar num modelo alternativo brasileiro em 2004 e, no ano seguinte, mesmo sem patrocínio, alugou parte do pavilhão da Bienal para fazer a primeira edição da SP Arte, convidando para um debate (sobre arte, arquitetura e sobrevivência dos museus) o escultor José Resende e o premiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, entre outros.

Esse aspecto educacional chamou a atenção da mídia e se fortalece a cada nova edição. A deste ano terá um ciclo de palestras aberto ao público no auditório Lina Bo Bardi, do Museu de Arte Moderna, do qual irão participar nomes como Tanya Barson, curadora internacional da Tate Gallery de Londres, e o especialista em conservação de obras de arte Stephan Schäfer, da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Lisboa. Além deles, virão como convidados diretores de museus latino-americanos como o de Lima, o argentino Macla e europeus (Tate e Pompidou). Jornalistas da Alemanha, Chile, Espanha e Itália irão cobrir a SP Arte, que nesta edição tem sete galerias estrangeiras participantes: a Sur (Uruguai); Mário Sequeira (Portugal); Isabel Aninat e Florencia Loewenthal (Chile); Sycomore Art (França), Jorge Mara-La Ruche e GC Estudio de Arte (Argentina).

Publicado em 14/5/08

Fonte: Revista Bravo! / Revista SP Arte

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Feiras em baixa, bienais em alta

Silas Martí

A ascensão de eventos como a SP Arte - em contraposição à crise das bienais - altera as relações dos artistas com o mercado, o público e suas próprias obras


Quando o coletivo Chelpa Ferro e o artista Caio Reisewitz apresentaram suas obras no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, há três anos, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, estava na cidade, mas faltou ao vernissage por um problema de agenda.

Há dois meses, em Madri, lá estava o ministro ao lado dos reis da Espanha, Juan Carlos e Sofía, para a abertura oficial da Arco, feira de arte que teve o Brasil como convidado de honra e mereceu R$ 2,6 milhões do Ministério da Cultura, 130 vezes o valor investido então em Veneza.

Um "problema de agenda" no mínimo sintomático da ascensão das feiras de arte em detrimento das bienais. Os eventos do mercado ganham prestígio comparável às grandes mostras. E é nesse cenário que a SP Arte, em São Paulo, ganha a quarta edição neste mês.

Dessa decadência das bienais surge um roteiro alternativo para o jet-set das artes visuais, que disputa com as exposições a atenção dos críticos e do público. No lugar de Veneza, São Paulo e Kassel, na Alemanha, onde a cada cinco anos acontece a Documenta, ganham peso na agenda de curadores, galeristas e colecionadores as cidades desse circuito comercial: Madri, Nova York, Basiléia, na Suíça, Londres e Miami. O reino das feiras.

Íntegra: Revista BRAVO!